Diante de ti
No mar que palpita os olhos, escarnece a alma
Diante de ti,
Em meio ao véu soturno
Do primeiro sopro cardíaco da manhã
Perpétuo
O cheiro de abacate cortado
Indignas
Roseiras em caules mastigados
Tiranos
Psicopatas em cruzes de orvalho
Diante de ti,
Bigas transportando palhaços invisíveis
Quimeras em estátuas de sal
Maçãs nas teias de aranha
O improvável mausoléu de heranças equívocas
No mar que palpita os olhos, escarnece a alma
Diante de ti,
Godot na corda de Lucky
Sabor dos cachimbos de plástico
Colchões em pé no canto do quarto
O amargo estampido no palato do fantoche
As ruínas nas migalhas de janeiro
Diante de ti,
Sobremesas antes do jantar
Nicotina em doses curativas
Puxadores soltos nos parafusos
Conservas vazias embaixo da pia
No mar que palpita os olhos, escarnece a alma
No mar que palpita os olhos, escarnece a alma
Diante de ti,
Túmulos em poses circenses
Acrobatas no subúrbio animal
Embriaguez em tempos de paz
Baratas mortas dentro dos moletons
Almoços em xícaras de papel
Adiante, adiante, adiante
Elos em crinas de borracha
O improvável mausoléu de heranças equívocas
No mar que palpita os olhos
A planta do céu da boca
Antílopes fumando cigarros de bronze
Cobertores atirados em camas molhadas
Diante de ti, escarnece a alma
Interruptores amarelos como os dentes
Panelas com cabos quebrados
Isqueiros molhados
Pregos de cabeça torta
Azeite na garrafa de vinagre
Vinagre no pote de sal
Sal na boca do fogão
Buraquinhos do chuveiro trancados
Alicate que não abre mais
Diante, diante, diante
De ti
Não adianta
Mais
A revolução dos buchos
Ela gritava do segundo andar
Para mais um homem que a deixava
Pelo portão da frente
“Eu não preciso de respeito! Muito menos de amor!
Eu preciso de silêncio!
Um terreno para meus ossos cavarem até o útero da terra
Encontrar o esconderijo dos fracos e inocentes
E por tão inocentes amam e odeiam
Não perdoam
Não nascem
Explodem
Saem pelos vulcões e viram cinzas
Viram noticiário e atraem turistas
Poeira refletida
Excessos! Excessos! Excessos!
Somos todos desajustados
Trocamos de mulheres, de homens
Procuramos amigos melhores
Não nos ajustamos com o velho, com o novo, nem com o próximo
A sede mata, a água também
Somos vírus mutantes
Matando, morrendo, mudando e matando
De novo e de novo
Ajustes e desajustes”
O homem não olhou para trás
Ela viu metade da minha cabeça
E você, o que está olhando?
Vim ver o show
Ah! Você é aquele esquisito que vomita sozinho toda noite!
Quem disse que estou sozinho?
Todo mundo aqui sabe que você é desagradável!
Mais uma vez ela estava certa,
Errada estava a Bíblia
O homem dobrou a esquina
Como todos os outros que saíam
Do segundo andar, pelo portão
E quem ficava com a agonia sonora
Que descia pelos fios de luz por trás da parede
Até o interruptor do quarto
Era o desagradável que vomitava sozinho toda noite
E sempre que algumas coisas se repetiam
Eu pensava brevemente:
“Algumas pessoas sabem o que querem,
Outras apenas querem
Sem saber”
Granada
Da mancha no olho casto
Do prurido na pele branca
Dos calos relevantes no pé 33
Das paisagens que sobram na cama
Leio Azevedo por 3,99
O primeiro livro vendido no bazar
Segundo a caixa
Pedido de ordem nas cruzadas
Não sei a capital do Líbano
Sugiro Lindóia do Sul
Muita letra
“Não sei”, por fim, nos une
Uníssonos
Tocamos cabelos e formigas
Nas paredes mofadas
Nos panos de pia
No pacote de lixo
Na folhagem que atrai abelhas
Nas folhagens que nos une
Que regamos com suco de limão
E adubamos com erva molhada
Assim sentamos à margem
Das tristes notícias do erro comum
Das traças viciadas em naftalina
Dos equívocos das tesouras com ponta
Do nome no lápis sem ponta
Da taça trincada por um erro comum
Dos beijos si-lá-bi-cos
Voltamos a caminhar
Torcemos nossos corpos
Na quina do sofá
Na porta do box
Achamos engraçado esse porte de arma
Quebramos, esparramamos
Os cacos da porcelana verde por dentro
Vamos embora, vamos embora
Nosso chão tem carvão em brasa
Nossos símbolos vestem chapéu
Nossa ternura usa bigode
Nossas extravagâncias estão no sótão
Deixo a toalha de banho marcada de cera
Uso dois pingos de gel
Repito a cueca
Corto as unhas dentro do cinzeiro (um pote de metal para presente)
Cheio de ilustrações geométricas
Mas saem voando, capazes de orbitar
Vamos embora, vamos embora
Ela deixa rastros de primavera pela casa
Ela queima como um verão bêbado
Ela é outono quando sonha e inverno quando chora
Suas toalhas de banho têm cheiro de pêssego
Seus cigarros ardem como incenso
Damos nomes aos insetos que respiram pela boca
Das patrulhas pelas travessas
Do mendigo que fala chinês e mendiga em espanhol
Da noite que embrulha a ópera
Dos centímetros que separam metros
Do último furo no cinto
O álibi como um simples não
À margem, à margem
De um confuso ato
Os espelhos podem marinar
A recompensa que nunca acaba
Ela já está dormindo
Minha lira de 29 anos
Plano cartesiano
A luz da lâmpada cobriu meus temperos
Já não encontro minha doença dentro do pote
Procuro em vão, um dia sóbrio na geladeira
Comprei bolo de formiga, chá de astronauta
Um chiqueiro novo, ferraduras de anjos
Uniformes despejados, cinzeiros desbotados
Alqui mia, cheia de bigode e pose
Está tão gorda e peluda quanto seu dono
Encontrei alguns remédios contra-indicação
Quando bisbilhotava a construção ao lado
“Ei” gritou-me o proprietário lá da rua
“Se acabar com minhas pílulas
Sou bem capaz de comprar um pato e um tapete”
Já não encontro minha doença dentro do pote
A luz da lâmpada, a luz da lâmpada
Alqui não veio mais aqui
Procuro em vão, um dia sóbrio na geladeira
Comprei molho de algodão, rocambole de eutanásia
Fissuras cerebrais acrobáticas, miúdos elétricos
Ultrajes simbólicos, medo do escuro
Encontrei um pato e um tapete
Quando bisbilhotava a construção ao lado
“Ei” gritou-me o proprietário lá da rua
“Se acabar com minhas pílulas
Sou bem capaz de comprar um pato e um tapete”
Já não encontro minha doença dentro da lâmpada
Procuro em vão, um dia sóbrio no pote
Alqui mia, algo dão
Alqui mia, algo dão
Alqui mia, algo dão
Alqui não veio mais aqui
Se Alqui mia
Algo dão
O capcioso eu derrotado
Foi Churchill quem disse:
“Agora que fizeram o que queriam
Vocês têm uma tarefa mais difícil
Gostar do que fizeram”
Ao som dos ruídos gástricos da cidade
O poder nunca foi tão metafísico
Partindo de um ponto ignóbil e viril
O desvio insular coberto por um lençol com dois furos
Homens e mulheres como adesivos num campo de golfe
Foi por isso que Prometeu prometeu não prometer mais nada
Sempre ouço dela: “Não existe doença, existe doentes”
Há muito pouco para mastigar ultimamente
Tudo parece trivial e sem gosto
Comboio marginal
Animais gargalhando, pois voltaram no tempo
E abortaram suas mães
E as tartarugas vivem muito
E as corujas também
Enquanto um besouro castrado na gaiola
Queima num berço vicioso
Colando fumaça no quadro branco
Escritor tarde demais
Escritor cedo demais
Desaprendendo
A caçar na escuridão
Um feixe de luz ilusório
Que me cega
No primeiro feixe de luz
Na escuridão
Era 22:00 quando faltou luz no bairro
E o primeiro grito que ouvi foi esse:
“Filha da puta! E agora como saberei a hora de parar de limpar o rabo?”
O maldito cano sanfonado
Os intrusos, a goteira, as rachaduras da parede, o barulho da caixa d’água
Uma aranha sem pernas tecendo sua teia para afastar-se de mim
Poemarcenaria
Quando as veias apertam
O martelo bate o sino
E o sol nasce
Gracioso
Como borboletas no sal grosso
Quando as veias rasgam
O escárnio é doce
Como um favo leproso
E o sol se põe
Entre mercadorias baratas
Sócrates suicidou-se por acreditar na justiça
Jesus pensou tanto crucificado
Que coagulou sangue na boca
Vestígios nos sons do telhado
Morte lenta a criar raízes
Nas marmitas do absurdo
Teatro de uma cena congelada
Piada contada em bocejos
A lua nasce dentro de um chupão
Navega nas cerâmicas do peixe
E ri nos relâmpagos de um vulcão
A pena
Há pena
Apenas
Casacos cheios de furos dos cigarros
Consórcios
Com sócios
Labaredas do suicídio coletivo
O papagaio grita:
“Existe vida na gaiola, existe vida na gaiola, existe vida na gaiola”
Novamente o despertador é programado
E se acorda um minuto antes
Do poema
O enredo da porta ao lado
A tampa da panela que cai
Dando voltas sobre a mancha
No azulejo frio e úmido do dia vinte
O forno do fogão inutilizado
Pela válvula protetora de gás para crianças
Mas nunca houve criança, nem costela assada
O prato quebra
Como inimigo público número um
John, João, o rato suplica um martelo na ratoeira
O vestido foi tingido pela empregada
Que misturou uma camiseta laranja nas roupas brancas
John, João, o rato ainda se debate com os dentes cravados no queijo
E eu ainda estou acordado
Porque minha toalha de banho 100% algodão
Esteve molhada desde ontem
Por que separar o garfo da faca?
Era sopa
O guardanapo terminou
Por limpar marcas de sangue nas frutas
Tem uma batata podre embaixo da pia
Eu ouvi, mas não falei
Os banhos são maravilhosos
Até gosto daquela música
Mas nunca cantaram até o final
Ou será que fui interrompido pelo carteiro sem botas?
John, João, Joana, Jô, Jó
Eu recolhi a batata
Terminei com o sofrimento do rato
E imaginei vocês
Em um transatlântico
Durante a manhã
Falando sobre o vizinho
Que nunca estava
Três dias
Vi anjos de plástico
Assim como vi o pau de plástico
Ela acreditava que o bicho papão
Tinha oito dedos em cada mão
Falei que tinha matado o danado
Com uma pistola d’água cheia de vinagre
É sério, ela disse
Vi o picareta tentando mostrar o dedo do meio
Mas ele tinha oito e não tinha um dedo do meio
Ora ora mulher, que siririca desperdiçou
Siririca – confessou – pra mim é como um carburador velho
Só fede e não liga
Meu negócio é língua
Língua áspera e grossa
Rachada e cheia de cores
Por todo autódromo
Deve ser mais lisa que uma capa de livro
Nada! Nunca me depilei, acho desnecessário
Sou natural como o brilho nos olhos do canário
Natural como a carne nas gengivas do tubarão
E o bicho papão
Você quer mais uma bebida?
Por favor
A vela sete dias estava no sexto
A faca no chão tinha sangue seco na ponta
O incenso fedia canela
TV ligada no último volume
Contando um fato de lástima racional
Tremendamente constrangido
Por fazer aniversário ali
E como presente
Uma torrada de querosene
Saudei os anjos e o pau de plástico
Facas e os rasgos no sofá
Privada entupida
Gatos boiando na piscina
Mãe morta após uma temporada familiar
Fumaça dentro da geladeira
Cheiro de sapo nos travesseiros
Cobertores com figuras do arco-íris
Pantufas dentro do plástico
Calcinhas em pó de neve
Boquete enquanto segurava um peido
Nossos sabores não se entrelaçaram
Não à toa
Meses depois
Quando passou de carro e grasnou em filtro branco
Circulando a rótula pra voltar
Me escondi dentro de um banheiro de posto
O único brilho natural que eu carregava
Era uma moeda da Argentina
Vapores, vapores
Caçando as amígdalas e as mariposas
Em casa após três dias do aniversário
Comi dois ovos cozidos
Sentei pra escrever
Mas não saiu nada
Imaginei o bicho papão de oito dedos
Entalhado na parede
Mostrei-lhe o dedo do meio
E uma lágrima solitária
Caiu dentro do copo
Ramon Carlos é coautor do livro estrAbismo (Editora Viseu, 2018). Escreve no site: www.estrAbismo.net. Tem materiais diversos espalhados em revistas como: Mallarmargens, Amaité Poesias & Cia, InComunidade, LiteraLivre, Subversa, Philos, Escambau, Bacanal, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura, Jornal Plástico Bolha, A Bacana, Cidadão Cultura e Olho Vivo.