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a poesia é tudo aquilo que ela não quer dizer

por Ramon Carlos
Asset 21

Diante de ti 
No mar que palpita os olhos, escarnece a alma 
Diante de ti, 
Em meio ao véu soturno 
Do primeiro sopro cardíaco da manhã 
Perpétuo 
O cheiro de abacate cortado 
Indignas 
Roseiras em caules mastigados 
Tiranos 
Psicopatas em cruzes de orvalho 
Diante de ti, 
Bigas transportando palhaços invisíveis
Quimeras em estátuas de sal 
Maçãs nas teias de aranha 
O improvável mausoléu de heranças equívocas 
No mar que palpita os olhos, escarnece a alma 
Diante de ti, 
Godot na corda de Lucky 
Sabor dos cachimbos de plástico 
Colchões em pé no canto do quarto 
O amargo estampido no palato do fantoche 
As ruínas nas migalhas de janeiro 
Diante de ti, 
Sobremesas antes do jantar 
Nicotina em doses curativas 
Puxadores soltos nos parafusos 
Conservas vazias embaixo da pia 
No mar que palpita os olhos, escarnece a alma 
No mar que palpita os olhos, escarnece a alma 
Diante de ti, 
Túmulos em poses circenses 
Acrobatas no subúrbio animal 
Embriaguez em tempos de paz 
Baratas mortas dentro dos moletons 
Almoços em xícaras de papel 
Adiante, adiante, adiante 
Elos em crinas de borracha 
O improvável mausoléu de heranças equívocas 
No mar que palpita os olhos 
A planta do céu da boca 
Antílopes fumando cigarros de bronze 
Cobertores atirados em camas molhadas 
Diante de ti, escarnece a alma 
Interruptores amarelos como os dentes 
Panelas com cabos quebrados 
Isqueiros molhados 
Pregos de cabeça torta 
Azeite na garrafa de vinagre 
Vinagre no pote de sal 
Sal na boca do fogão 
Buraquinhos do chuveiro trancados 
Alicate que não abre mais 
Diante, diante, diante 
De ti 
Não adianta 
Mais 

A revolução dos buchos 

Ela gritava do segundo andar
Para mais um homem que a deixava 
Pelo portão da frente 
“Eu não preciso de respeito! Muito menos de amor! 
Eu preciso de silêncio! 
Um terreno para meus ossos cavarem até o útero da terra 
Encontrar o esconderijo dos fracos e inocentes 
E por tão inocentes amam e odeiam 
Não perdoam 
Não nascem 
Explodem 
Saem pelos vulcões e viram cinzas 
Viram noticiário e atraem turistas 
Poeira refletida 
Excessos! Excessos! Excessos! 
Somos todos desajustados 
Trocamos de mulheres, de homens 
Procuramos amigos melhores 
Não nos ajustamos com o velho, com o novo, nem com o próximo 
A sede mata, a água também 
Somos vírus mutantes 
Matando, morrendo, mudando e matando 
De novo e de novo 
Ajustes e desajustes” 
O homem não olhou para trás
Ela viu metade da minha cabeça 
E você, o que está olhando? 
Vim ver o show 
Ah! Você é aquele esquisito que vomita sozinho toda noite! 
Quem disse que estou sozinho? 
Todo mundo aqui sabe que você é desagradável! 
Mais uma vez ela estava certa, 
Errada estava a Bíblia 
O homem dobrou a esquina 
Como todos os outros que saíam 
Do segundo andar, pelo portão 
E quem ficava com a agonia sonora 
Que descia pelos fios de luz por trás da parede 
Até o interruptor do quarto 
Era o desagradável que vomitava sozinho toda noite 
E sempre que algumas coisas se repetiam 
Eu pensava brevemente: 
“Algumas pessoas sabem o que querem, 
Outras apenas querem 
Sem saber” 

Granada 

Da mancha no olho casto 
Do prurido na pele branca 
Dos calos relevantes no pé 33 
Das paisagens que sobram na cama 
Leio Azevedo por 3,99 
O primeiro livro vendido no bazar 
Segundo a caixa 
Pedido de ordem nas cruzadas 
Não sei a capital do Líbano 
Sugiro Lindóia do Sul 
Muita letra 
“Não sei”, por fim, nos une 
Uníssonos 
Tocamos cabelos e formigas 
Nas paredes mofadas 
Nos panos de pia 
No pacote de lixo 
Na folhagem que atrai abelhas 
Nas folhagens que nos une 
Que regamos com suco de limão 
E adubamos com erva molhada 
Assim sentamos à margem 
Das tristes notícias do erro comum 
Das traças viciadas em naftalina 
Dos equívocos das tesouras com ponta 
Do nome no lápis sem ponta 
Da taça trincada por um erro comum 
Dos beijos si-lá-bi-cos 
Voltamos a caminhar 
Torcemos nossos corpos 
Na quina do sofá 
Na porta do box 
Achamos engraçado esse porte de arma 
Quebramos, esparramamos 
Os cacos da porcelana verde por dentro 
Vamos embora, vamos embora 
Nosso chão tem carvão em brasa 
Nossos símbolos vestem chapéu 
Nossa ternura usa bigode 
Nossas extravagâncias estão no sótão 
Deixo a toalha de banho marcada de cera 
Uso dois pingos de gel 
Repito a cueca 
Corto as unhas dentro do cinzeiro (um pote de metal para presente) 
Cheio de ilustrações geométricas 
Mas saem voando, capazes de orbitar 
Vamos embora, vamos embora 
Ela deixa rastros de primavera pela casa 
Ela queima como um verão bêbado 
Ela é outono quando sonha e inverno quando chora 
Suas toalhas de banho têm cheiro de pêssego 
Seus cigarros ardem como incenso 
Damos nomes aos insetos que respiram pela boca 
Das patrulhas pelas travessas 
Do mendigo que fala chinês e mendiga em espanhol 
Da noite que embrulha a ópera 
Dos centímetros que separam metros 
Do último furo no cinto 
O álibi como um simples não 
À margem, à margem 
De um confuso ato 
Os espelhos podem marinar 
A recompensa que nunca acaba 
Ela já está dormindo 
Minha lira de 29 anos 

Plano cartesiano 

A luz da lâmpada cobriu meus temperos 
Já não encontro minha doença dentro do pote 
Procuro em vão, um dia sóbrio na geladeira 
Comprei bolo de formiga, chá de astronauta 
Um chiqueiro novo, ferraduras de anjos 
Uniformes despejados, cinzeiros desbotados 
Alqui mia, cheia de bigode e pose 
Está tão gorda e peluda quanto seu dono 
Encontrei alguns remédios contra-indicação 
Quando bisbilhotava a construção ao lado 
“Ei” gritou-me o proprietário lá da rua 
“Se acabar com minhas pílulas 
Sou bem capaz de comprar um pato e um tapete” 
Já não encontro minha doença dentro do pote 
A luz da lâmpada, a luz da lâmpada 
Alqui não veio mais aqui 
Procuro em vão, um dia sóbrio na geladeira 
Comprei molho de algodão, rocambole de eutanásia 
Fissuras cerebrais acrobáticas, miúdos elétricos 
Ultrajes simbólicos, medo do escuro 
Encontrei um pato e um tapete 
Quando bisbilhotava a construção ao lado 
“Ei” gritou-me o proprietário lá da rua 
“Se acabar com minhas pílulas 
Sou bem capaz de comprar um pato e um tapete” 
Já não encontro minha doença dentro da lâmpada 
Procuro em vão, um dia sóbrio no pote 
Alqui mia, algo dão 
Alqui mia, algo dão 
Alqui mia, algo dão 
Alqui não veio mais aqui 
Se Alqui mia 
Algo dão 

O capcioso eu derrotado 

Foi Churchill quem disse: 
“Agora que fizeram o que queriam 
Vocês têm uma tarefa mais difícil 
Gostar do que fizeram” 
Ao som dos ruídos gástricos da cidade 
O poder nunca foi tão metafísico 
Partindo de um ponto ignóbil e viril 
O desvio insular coberto por um lençol com dois furos 
Homens e mulheres como adesivos num campo de golfe
Foi por isso que Prometeu prometeu não prometer mais nada 
Sempre ouço dela: “Não existe doença, existe doentes” 
Há muito pouco para mastigar ultimamente 
Tudo parece trivial e sem gosto 
Comboio marginal 
Animais gargalhando, pois voltaram no tempo 
E abortaram suas mães 
E as tartarugas vivem muito 
E as corujas também 
Enquanto um besouro castrado na gaiola 
Queima num berço vicioso 
Colando fumaça no quadro branco 
Escritor tarde demais 
Escritor cedo demais 
Desaprendendo 
A caçar na escuridão 
Um feixe de luz ilusório 
Que me cega 
No primeiro feixe de luz 
Na escuridão 
Era 22:00 quando faltou luz no bairro 
E o primeiro grito que ouvi foi esse: 
“Filha da puta! E agora como saberei a hora de parar de limpar o rabo?” 
O maldito cano sanfonado 
Os intrusos, a goteira, as rachaduras da parede, o barulho da caixa d’água 
Uma aranha sem pernas tecendo sua teia para afastar-se de mim 

Poemarcenaria 

Quando as veias apertam 
O martelo bate o sino 
E o sol nasce 
Gracioso 
Como borboletas no sal grosso 
Quando as veias rasgam 
O escárnio é doce 
Como um favo leproso 
E o sol se põe 
Entre mercadorias baratas 
Sócrates suicidou-se por acreditar na justiça 
Jesus pensou tanto crucificado 
Que coagulou sangue na boca 
Vestígios nos sons do telhado 
Morte lenta a criar raízes 
Nas marmitas do absurdo 
Teatro de uma cena congelada 
Piada contada em bocejos 
A lua nasce dentro de um chupão 
Navega nas cerâmicas do peixe 
E ri nos relâmpagos de um vulcão 
A pena 
Há pena 
Apenas 
Casacos cheios de furos dos cigarros 
Consórcios 
Com sócios 
Labaredas do suicídio coletivo 
O papagaio grita: 
“Existe vida na gaiola, existe vida na gaiola, existe vida na gaiola” 
Novamente o despertador é programado 
E se acorda um minuto antes 
Do poema 

O enredo da porta ao lado 

A tampa da panela que cai 
Dando voltas sobre a mancha 
No azulejo frio e úmido do dia vinte 
O forno do fogão inutilizado 
Pela válvula protetora de gás para crianças 
Mas nunca houve criança, nem costela assada 
O prato quebra 
Como inimigo público número um 
John, João, o rato suplica um martelo na ratoeira 
O vestido foi tingido pela empregada 
Que misturou uma camiseta laranja nas roupas brancas 
John, João, o rato ainda se debate com os dentes cravados no queijo 
E eu ainda estou acordado 
Porque minha toalha de banho 100% algodão 
Esteve molhada desde ontem 
Por que separar o garfo da faca? 
Era sopa 
O guardanapo terminou 
Por limpar marcas de sangue nas frutas 
Tem uma batata podre embaixo da pia 
Eu ouvi, mas não falei 
Os banhos são maravilhosos 
Até gosto daquela música 
Mas nunca cantaram até o final 
Ou será que fui interrompido pelo carteiro sem botas? 
John, João, Joana, Jô, Jó 
Eu recolhi a batata 
Terminei com o sofrimento do rato 
E imaginei vocês 
Em um transatlântico 
Durante a manhã 
Falando sobre o vizinho 
Que nunca estava 

Três dias 

Vi anjos de plástico 
Assim como vi o pau de plástico 
Ela acreditava que o bicho papão 
Tinha oito dedos em cada mão 
Falei que tinha matado o danado 
Com uma pistola d’água cheia de vinagre 
É sério, ela disse 
Vi o picareta tentando mostrar o dedo do meio 
Mas ele tinha oito e não tinha um dedo do meio 
Ora ora mulher, que siririca desperdiçou 
Siririca – confessou – pra mim é como um carburador velho 
Só fede e não liga 
Meu negócio é língua 
Língua áspera e grossa 
Rachada e cheia de cores 
Por todo autódromo 
Deve ser mais lisa que uma capa de livro 
Nada! Nunca me depilei, acho desnecessário 
Sou natural como o brilho nos olhos do canário 
Natural como a carne nas gengivas do tubarão 
E o bicho papão 
Você quer mais uma bebida? 
Por favor 
A vela sete dias estava no sexto 
A faca no chão tinha sangue seco na ponta 
O incenso fedia canela 
TV ligada no último volume 
Contando um fato de lástima racional 
Tremendamente constrangido 
Por fazer aniversário ali 
E como presente 
Uma torrada de querosene 
Saudei os anjos e o pau de plástico 
Facas e os rasgos no sofá 
Privada entupida 
Gatos boiando na piscina 
Mãe morta após uma temporada familiar 
Fumaça dentro da geladeira 
Cheiro de sapo nos travesseiros 
Cobertores com figuras do arco-íris 
Pantufas dentro do plástico 
Calcinhas em pó de neve 
Boquete enquanto segurava um peido 
Nossos sabores não se entrelaçaram 
Não à toa 
Meses depois 
Quando passou de carro e grasnou em filtro branco 
Circulando a rótula pra voltar 
Me escondi dentro de um banheiro de posto 
O único brilho natural que eu carregava 
Era uma moeda da Argentina
Vapores, vapores 
Caçando as amígdalas e as mariposas 
Em casa após três dias do aniversário 
Comi dois ovos cozidos 
Sentei pra escrever 
Mas não saiu nada 
Imaginei o bicho papão de oito dedos 
Entalhado na parede 
Mostrei-lhe o dedo do meio 
E uma lágrima solitária 
Caiu dentro do copo 


Ramon Carlos é coautor do livro estrAbismo (Editora Viseu, 2018). Escreve no site: www.estrAbismo.net. Tem materiais diversos espalhados em revistas  como: Mallarmargens, Amaité Poesias & Cia, InComunidade, LiteraLivre, Subversa, Philos, Escambau, Bacanal, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura, Jornal Plástico Bolha, A Bacana, Cidadão Cultura e Olho Vivo. 

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